Vitimologia: a violência nas relações íntimas (parte 2)

Por Ceres Canali

 

Em continuação o artigo anterior (também chamado Vitimologia: a violência nas relações íntimas), temos os componentes da violência psicológica. Segundo Hirigoyen, em situações de assédio é comum haver a repetição exaustiva a uma mesma pergunta, mensagem, questionamento e/ou resposta até conseguir saturar a capacidade crítica e julgamento. Assim, faz com que aceite qualquer coisa a qual seja proposta, por vezes apenas para findar a perturbação que lhe é imposta. Nesse sentido, o autor diz: “[…] ‘são, por exemplo, discussões infindáveis para extorquir confissões, até que, por exaustão, ela acaba cedendo” (HIRIGOYEN, 2006, p. 33). Outra estratégia consiste em vigiar a vítima (geralmente mulher), segui-la pela rua, assediá-la por telefone e/ou esperá-la na saída do trabalho.

No aviltamento, o propósito é atingir a autoestima mostrando-a ser irrelevante e ‘não valer nada’. A violência se manifesta em forma de atitudes de desdém, palavras ferinas, expressões depreciativas e observações desagradáveis. Deprecia o que faz, o que é, expressa dúvidas quanto à sua saúde mental, a acusa de ser depressiva, antecipando, assim, aquilo a que se quer a induzir, e nega suas ideias e suas emoções. Acusa-a de ter condutas inadequadas, reclama da maneira como cuida da casa, das crianças, de suas roupas, de suas despesas. Rebaixa-a com palavras que aparentam ser sinceras e corretas, ataca sua família, ataca a sua capacidade de ser dona de casa, ataca suas características físicas e muito fortemente, ataca suas qualidades na cama.

Para Hirigoyen (2006, p. 37), “humilhar, rebaixar, ridicularizar é algo que caracteriza a violência psicológica”. O outro é apenas uma válvula de escape, um depositário da raiva que o agressor tem de si. As violências psicológicas, o aviltamento sistemático, os insultos diários provocam uma ruptura da identidade, uma derrocada interior com imensa lesão na autoestima, onde a vítima acaba por incorporar a depreciação e não se sente digna de ser amada.

“[…] bater portas, quebrar objetos para expressar seu mau-humor constituem atos de intimidação” (HIRIGOYEN, 2006, p. 39). Quando uma pessoa descarrega esses humores sobre objetos, o parceiro ou parceira pode interpretar isso como uma forma de violência controlada, trata-se, no entanto, de uma violência indireta, a mensagem que passa ao outro é: ‘olha a minha força! Olha o que posso fazer com você!’. A ameaça e a hostilidade são transmitidas muito mais claramente quando o homem brinca ostensivamente com uma faca, dirige perigosamente ou maltrata o animal de estimação. O objetivo de tais condutas é despertar medo.

Como indiferença às demandas afetivas caracteriza-se

“a violência moral […], igualmente a recusa em demonstrar qualquer interesse pelo outro. É mostrar-se insensível ou desatento para com sua parceira ou seu parceiro, é também ignorar suas necessidades, seus sentimentos ou criar intencionalmente uma situação de falta e frustração para manter o outro na insegurança” (HIRIGOYEN, 2006, p. 40).

Este é o tópico mais comum na clínica quando se atendem casais: o recusar-se a falar com ele(a), recusar-se a sair com o(a) parceiro(a), acompanhá-lo(a) a algum lugar, ir a festas da família, ficar ‘de cara amarrada’ durante dias seguidos sem que o outro saiba o porquê, desconsiderar o estado físico e psicológico da companheira ao querer, por exemplo, ter relações após uma briga violenta, ou exigir que faça faxina quando está doente. Todos esses atos demonstram abertamente sua rejeição ou seu desprezo.

A violência psicológica pode evoluir para ameaças bastante cruéis: a de tirar as crianças, de negar-se a dar dinheiro, de espancar, de se suicidar, de sugerir que haverá represálias contra todos que estão ao redor se a mulher não agir como ele espera dela. A antecipação de um golpe pode fazer tanto mal ao psiquismo quanto o golpe realmente dado. É o reforço da incerteza sob a realidade da ameaça e isto retroalimenta o poder sobre o outro. A chantagem de suicídio é uma violência extremamente grave, porque leva o parceiro(a) a endossar a responsabilidade da violência: ‘foi culpa minha, eu é que não soube ajudá-lo(a)!’.

Todas essas maneiras de agir separadamente poderiam fazer parte do quadro de uma cena comum da vida familiar, mas as repetições, intensidades, permanente duração no tempo e particularmente a assimetria nas trocas é que constituem a violência. E, contrariamente ao que ocorre numa briga conjugal de um casal dito adequado, existe um limite no que pode ser dito e para-se por aí. Nesse tipo de relação, alicerçado na violência psicológica, o objetivo é atingir as emoções do(a) parceiro(a) ou, mais exatamente, suas fragilidades emocionais.

A partir desta clareza e de conheceremos cada vez mais a ‘maquinaria da raiva’, compreenderemos mais plenamente a dinâmica mental, emocional e da raiva humana e a violência impulsiva que muitas vezes a acompanha: o que a desencadeia, o que influencia como as pessoas se regulam, o que as deixa com raiva, o quanto ficam com raiva, o que fazem quando estão com raiva e sua capacidade ou incapacidade de controle.

 

REFERÊNCIAS:

HIRIGOYEN, Marie-France. A violência no casal: da coação psicológica à agressão. Tradução: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. (Seção 2 – A violência psicológica – do capítulo I – SOB OS GOLPES, QUE FERIDA(S)?).

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