O difícil problema: qual a realidade dos maus-tratos e abuso sexual infantil?

Por Ceres Canali

As definições de maus-tratos e abuso sexual variam conforme a perspectiva adotada ao confrontá-la, revelando particularidades dos estudos nas áreas dos serviços jurídicos, médicas, psicológicas ou sociais. Parte da variabilidade das definições se deve ao fato deste fenômeno pertencer a todas as categorias mencionadas, cada uma com a sua finalidade, mas com interpretações distintas sobre o que constituem os maus-tratos. Isto é, um mesmo fato pode ter um significado diferente para quem o sofre, para quem o observa, para quem o investiga, para quem o julga.

Tomemos como exemplo a circunstância de uma criança diante da hipotética introdução de um supositório ou de um dedo em sua genitália. Um observador adulto pode interpretar a segunda situação, na ausência de uma razão ou de justificativas que retirem a legitimidade deste comportamento como um ato de valor sexual. No entanto, também pode acontecer que a criança, por razões de idade ou experiência, não atribua significados eróticos ao ato nem tenha um impacto traumatizante por possuir um significado terapêutico ou de cuidado com a sua higiene.

Estudos sobre o impacto dos eventos traumáticos que acabam por comprometer a integridade física de uma pessoa revelam que as consequências de tais eventos dependem de como elas são avaliadas cognitivamente.

As definições de abuso sexual presentes na literatura são compostas por pelo menos dois elementos. O primeiro corresponde a diferentes tipos e graus de maus-tratos, sendo estes precisos e bem definidos, e o segundo ao ponto de vista subjetivo da vítima, mais vago e menos operativo, como aquilo que interfere no bem-estar da criança (SALVATORI, 2001). Isso se deve à dupla natureza do fenômeno: o primeiro é um ato cometido, ocorrido mundialmente, e o segundo refere-se ao estado subjetivo da criança que a sofre.

Um dos problemas mais debatidos por operadores dizia respeito à ênfase e importância a ser dada a cada um desses dois aspectos: uma ação abusiva pode ser definida como tal, mesmo que não tenha efeitos negativos sobre a criança? E uma ação realizada sem a intenção de prejudicar a criança, mas que, no entanto, teve efeitos negativos sobre ela, é um maltrato? Para alguns autores, a apresentação de danos físicos ou psicológicos na criança, ou a alteração de comportamento não é relevante, pois a natureza do ato cometido ou omitido, é o primordial. Para outros, porém, a medida dos maus-tratos consiste nas consequências relatadas pela criança.

Essa discussão é complexa porque está diretamente ligada a outro problema difícil de esclarecer: o impacto de qualquer ação que um ser humano toma sobre o outro não está em uma relação linear com a ação propriamente dita. Assim, pode-se ter efeitos diferentes em pessoas diferentes, tal como atos diferentes na mesma pessoa podem ter efeitos semelhantes.

No entanto, não sabemos o suficiente sobre o impacto de uma ação ou situação abusiva para dizer com razoável certeza que um determinado ato deve prejudicar qualquer criança, ou que outro ato deve ser neutro para qualquer criança. Qualquer definição de maus-tratos deve incluir os aspectos objetivos e subjetivos da ação, pois um aspecto especifica o outro e vice-versa. Para saber, por exemplo, o que inibe ou impede o curso natural do desenvolvimento da criança, devem ser consideradas as consequências da violência sobre aquela criança em particular.

Por fim, é difícil fazer estimativas precisas, pois, nem todos os maus-tratos são denunciados às autoridades. É possível que o número de denúncias seja inferior aos maus-tratos reais, e deve-se considerar que nem todos os casos relatados correspondem a abusos reais. E ainda, dentre os casos relatados, também podem existir casos em que, após encerrada a investigação, os maus-tratos nunca aconteceram.

REFERÊNCIAS:

GULOTTA, G.; CUTICA, I. Guida ala perizia in tema di abuso sessuale e ala sua critica. Giuffré Editore. Milano, 2009.

SALVATORI, A.  L´ abuso sessuale al minore e il dano psichico. Giuffré Editore. Milano, 2001.

Subir