Uma ameaça invisível que não passa pode traumatizar?

Por Michele Beckert

Algumas áreas da psicologia, como outras áreas da saúde, orientam o diagnóstico e tratamento com base na manifestação dos sintomas. Hoje trataremos de outro entendimento, uma teoria baseada em fundamentos neurocientíficos: a Teoria dos Traumas Psicológicos.

A maioria da população pensa no trauma como algo originado em um evento avassalador, mas o estresse contínuo como a atual pandemia também é um fator desencadeante de traumas. Nosso corpo, após passar por uma situação estressante, necessita de um tempo para processar, reconhecer a ausência de perigo e desligar o sistema de alerta. Mas e se isso não ocorre? E vários meses se passam? Suponha um sistema vivendo com sobrecarga por muito tempo… Inevitavelmente, haverá uma pane, uma trava, e o equipamento parará de responder. Com nosso organismo, os traumas têm origem similar.

Certamente você já ouviu a expressão ‘com o tempo, isso passará’ após um acontecimento ruim. O que ninguém conta é que, na realidade, o tempo não eliminará a dor tampouco a aliviará, mas causará anestesia. O tempo não cura! E, no caso da pandemia, também não reduz a ameaça, pois estamos em perigo a todo o momento; há diversos gatilhos diários que podem fazer disparar de novo nosso sistema de alerta. Para muitos, a dor e sofrimento não passarão nem quando isso acabar e precisarão certamente de ajuda profissional adequada.

Há fatores importantes que influenciam a magnitude e o impacto psicológico de um trauma, como a duração e gravidade, o período em que ocorreu, o estado emocional, o tipo e quantidade de apoio recebidos, e os recursos disponíveis (isto é, tudo aquilo que fez bem e permitiu sair da situação traumática, se obteve rede de apoio, se buscou apoio na espiritualidade, por exemplo). Nesse sentido, os traumas de choque são acontecimentos inesperados e súbitos em que geralmente há uma sensação de desamparo e perda de controle. Os sujeitos em choque ficam atordoados, seus corpos tremem e podem falar coisas sem nexo, e o hemisfério esquerdo dos seus cérebros perdem a conexão com o direito em uma dissociação, isto é, uma ruptura, para se proteger.

Imagine receber a notícia de que você ou alguém da sua família tem um diagnóstico de Covid-19. Como você reagiria? O que pensaria? O que sentiria? Quanto tempo precisaria para se estabilizar, parar de tremer ou reduzir a enxurrada de pensamentos negativos que viriam em sua cabeça? Aliás, para eliminar seu medo de morrer, de perder alguém? Seres que já viveram outros tipos de eventos traumáticos de qualquer ordem (cabe salientar que todos já passamos por alguma experiência traumática), dependendo do momento e idade em suas vidas, podem apresentar maior vulnerabilidade e dificuldade em enfrentar situações estressantes e potencialmente traumatogênicas.  

Quando falamos sobre traumas, devemos prestar atenção à área subcortical do cérebro, o não-verbal, aquilo que não controlamos, mas sentimos. Sabe-se que, se não tratarmos um trauma após quarenta e cinco dias do evento, ficará registrado em nossas células, DNA e código genético, sujeito até mesmo a ser transmitido para outras gerações. Isso significa que, possivelmente, os que ainda virão, terão em seu código genético um registro de tudo isso, o que é um processo natural, pois a natureza o faz para proteger nossa espécie. A descarga de noradrenalina que temos quando passamos por alguma situação potencialmente traumática faz com que ativemos o nosso sistema de alerta e, se não houver uma resolução neuroquímica, o trauma se consolida. Isso significa que a memória traumática se fixa juntamente com a representação negativa que temos de nós, da vida e do mundo que formamos após ter passado por tal experiência. Além disso, o trauma desencadeia mudança hormonal, produção de cortisol, de opioides e adrenalina, e afeta nosso sistema nervoso. O sistema de luta e fuga é acionado, no qual uma das reações é o congelamento e a probabilidade de se traumatizar é ainda maior.

No entanto, não há como saber como cada pessoa agirá diante de uma situação. Indivíduos que ‘congelam’ frente à ameaça merecem atenção especial, pois sua energia se estagna no auge do evento, presa, e para curar é preciso liberá-la. Para isso, o trauma deve ser tratado ao nível cognitivo e sensorial, do qual as técnicas que atuam somente ao nível não-verbal não conseguem acessar. Ou seja, é possível tratar uma ansiedade e ensinar técnicas de respiração e relaxamento ao paciente, mas sem atuar diretamente no mecanismo ativa a ansiedade, na memória que ficou registrada, no evento-chave desencadeador.

Quando ocorre um fato que ativa a memória traumática, ativamos novamente nossas reações de luta, fuga ou congelamento. Essas reações possuem diversos disparadores físicos importantes para a manutenção da sobrevivência e preparo para a defesa, como a respiração ofegante, o enrijecimento dos músculos dos membros inferiores e superiores, a dilatação das pupilas, entre outros. Nascemos assim. Mas, quando o cérebro identifica um fato como perigoso ou relacionado à memória, o corpo automaticamente se preparará para que o evento não ocorra novamente.

Por mais complexo que seja, esse sistema de identificação de perigo falha muitas vezes e age preventivamente para garantir que não haverá uma re-traumatização. Por vezes não sabemos conscientemente quais são as causas que ativam esse sistema, fazendo com que reações físicas decorrentes de ansiedade, tristeza e a interpretação de situações semelhantes se repitam, instalando, assim, os transtornos psicológicos. Os transtornos depressivos e de ansiedade, por exemplo, são um exemplo dessa situação.

Infelizmente, após todo o advento da pandemia, é possível afirmar que haverá um grande boom de casos nos consultórios psicológicos e psiquiátricos, que demarcar uma nova ‘onda’ da pandemia e com resultados também devastadores.

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