Pandemia, luto e idosos

A pair of wrinkled hands of an elderly Chinese woman

Por Ceres Canali

‘Ele tem 87 anos, é comerciante aposentado, saudável e teima em manter-se no controle da sua vida, das suas contas bancárias, dos seus negócios, grupos sociais, cargos de presidência ou vice em clubes filantrópicos e Igrejas. Sua esposa, de 82 anos, também é saudável, embora tenha um pequeno problema pulmonar, e professora aposentada, mas que continua dando aulas sobre a vida. Ativos, lúcidos, ambos correm pelos seus compromissos… Até março de 2020, o primeiro lockdown. Saem às pressas da cidade para refugiarem-se em um sítio. Correm como foragidos! Esquecem roupas, contas a pagar, dinheiro, remédios… A única forma de comunicação com a família é a videochamada e o único contato com o mundo, a televisão. Pânico, ansiedade e medo da morte.’

Vivemos num mundo que nega a Morte como defesa da própria angústia sobre ela. Vivemos como infalíveis, imbatíveis, imortais. ‘A falta de saúde é momentânea, pois logo a readquirirei novamente’. Ninguém diz: ‘estou fumando e vou morrer de câncer no pulmão’. Ao invés disso, diz: ‘sou forte e não acontecerá nada comigo’. Sempre negamos.

Março de 2020 trouxe-nos o tabu mais complexo e enigmático do ser humano, como dito por Freud: a morte. Ela está perto, invisível, incontrolável. Veio a primeira onda de casos, depois a segunda, varrendo o mundo. Tem um nome disfarçado, difícil, mas que nasceu já com a idade da maioridade: COVID-19. E os idosos que teimavam em negá-la agora estão apavorados para enfrentá-la, falando dela, mas não sem medo, angústia ou dor.

Proponho entendermos um pouco mais o que é o luto sob a perspectiva da Psicanálise. É um processo lento e doloroso que se dá quando perdemos algo que nos é importante, podendo ser pessoas (parceiro de vida, namorado, amigo ou parente), conquistas (emprego, falência financeira ou objeto que lutou por adquirir) e até mesmo ideias (um projeto que estudou e se inviabilizou ou fracassou, um concurso). Como sinais do luto, temos a tristeza profunda, o afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja relacionada aos pensamentos sobre o objeto perdido, a perda de interesse no mundo externo e a incapacidade de substituir por um novo objetivo.

Enquanto uma dor física pode ser amenizada, a dor mental não consegue ser apaziguada facilmente. Pelo contrário, ela tende a ficar mais intensa com o tempo, até que passadas todas as fases do luto.

Segundo a Psicanálise, para ser possível dizer que enfrentou o luto, o ser humano precisa passar pelas seguintes fases:

  1. Desorientação, torpor, negação e isolamento: momento em que se tenta assimilar o que ocorreu, mas ainda se depara com muita negação e desespero diante da realidade. É natural sentir a necessidade de se isolar para conseguir encontrar sentido para o que está ocorrendo consigo mesmo;
  2. Anseio e busca da figura perdida: momento de forte presença do choro e necessidade de ficar junto da pessoa, se possível, ou com seus pertences pessoais;
  3. Dor profunda e desespero: quanto mais um indivíduo se sente culpado, mais difícil sair deste estágio. Aqui, a falta daquilo pelo qual se empenhou tanto é imensa, com capacidade de reavaliar sua postura frente à vida;
  4. Reorganização e reelaboração: nesse momento, ocorrem tentativas de reorganizar a vida para seguir em frente, mais consciente sobre o ocorrido no passado.

No entanto, a Psiquiatria define as fases de outra forma, sendo elas:

  1. Negação e isolamento: similar a descrita acima;
  2. Raiva: não aceitação do que aconteceu, percebendo o fato como uma injustiça;
  3. Barganha: nesse momento, o indivíduo enlutado recorre à esperança de cura, ressurreição milagrosa ante a finitude da vida, até mesmo promessas esquisitas e pedidos de serem levados no lugar de outro;
  4. Depressão: aqui, o sujeito tem a oportunidade de fazer uma reflexão profunda da vida;
  5. Aceitação: nesse último estágio, ocorre o início da contemplação de algumas perspectivas na sua vida com maior calmaria após todo esse período de dificuldades.

Diante disso, resta-nos pensar na pandemia, o luto e os idosos. A pandemia, para nossos personagens acima descritos, trouxe a perda do seu referencial social e da comunicação farta e livre, a iminência da morte negada, o medo exacerbado e a angústia. Se o luto se dá no amparo dos sentimentos, como fazê-lo do que se perde em vida, se quem ampara os sentimentos e até mesmo a Igreja foram impedidos de estar?

Devemos estar preparados para lidar com um pedido diferente vindo dos idosos, fornecendo maior atenção, amparo, escuta e apoio. Não podemos deixá-los morrer sozinhos, desamparados, sem criar novas perspectivas de vida, de algo novo à frente. Mas o que temos a oferecer se não sabemos o que acontecerá?

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