Por Sofia S. Jacobsen e Fernanda Santana de Miranda
Este primeiro artigo foca em como as experiências traumáticas na infância, especialmente o abuso e a desestrutura familiar, podem criar um caminho de vulnerabilidade que leva à prostituição. O objetivo é sensibilizar o leitor para as raízes profundas do problema, utilizando a história de “Tulipa” como fio condutor.
Quando olhamos para a prostituição, frequentemente caímos em julgamentos simplistas, ignorando as complexas histórias de vida que levam uma mulher a essa realidade. Longe de ser uma escolha livre de pressões, a entrada nessa profissão é, muitas vezes, o capítulo final de uma longa trajetória de dor, marcada por traumas que começaram muito antes, na infância. Histórias como a de Tulipa, uma mulher de 31 anos e mãe de dois filhos, nos ajudam a entender essa dolorosa conexão.
Antes de se tornar profissional do sexo, Tulipa tentou outros caminhos. Foi gerente de loja e buscou empreender, mas uma ferida antiga e profunda parecia selar seu destino. Dos seis aos onze anos, ela foi continuamente abusada sexualmente por seu padrasto. Além da violência física, ele a marcou com uma frase que ecoaria por toda a sua vida: “você vai ser puta”. Essa sentença, vinda de seu agressor, funcionou como uma profecia que, apesar de suas lutas, acabou se concretizando.
O abuso infantil não é apenas um evento isolado; ele molda a percepção que a vítima tem de si mesma e do mundo. A violência dentro de casa ensina, de forma perversa, que “as pessoas a quem ama batem em você”. Essa normalização da violência cria um ciclo que se repete. No caso de Tulipa, o trauma da infância ressurge em seu trabalho atual. Ela relata: “Às vezes quando chega algum cliente que me xinga ou quer dar um tapa por tara deles, me dá vontade de chorar, ou ir pra cima deles para bater”. Sua reação é um eco da dor não resolvida, uma reedição do trauma original em um novo cenário.
A história de Tulipa não é única. Pesquisas mostram que fatores como desestrutura familiar e traumas sexuais são determinantes para o ingresso na prostituição. Essas mulheres carregam cicatrizes que as tornam mais vulneráveis à exploração e à violência contínua.
Compreender essa dinâmica é fundamental. Não se trata de justificar, mas de contextualizar. Ao olharmos para uma profissional do sexo, precisamos enxergar além do estigma e reconhecer a possível sobrevivente de um passado traumático. O desejo de Tulipa de cursar Psicologia e construir um novo futuro para si e seus filhos é a prova de que, apesar da dor, a resiliência e a busca por um novo significado são possíveis. O primeiro passo para a cura é, sem dúvida, um olhar de acolhimento e escuta, livre de julgamentos.
Palavras-chave: Trauma infantil, Violência, Saúde mental, Relacionamento, Psicoterapia.
REFERÊNCIAS:
LEVY, S. J. F. A. Cansados de Guerra: um estudo clínico sobre a co-autoria na violência familiar. 2005. 219 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.
MACHADO, M. R. C. Narrativa de mulheres vítimas de violência: passos do processo. Psicologia: Teoria e Prática, v. 6, n. 1, p. 97-104, 2004.
BERNARDES, G. C. A prostituição no Brasil: Do reconhecimento da profissão às condições laborais. 2023. 25 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Pós-graduação Especialização em Direito da Seguridade Social) – Escola Superior da Magistratura Federal do Estado de Santa Catarina (ESMAFESC), Florianópolis, 2023.