Por Ceres Canali
As definições de abuso sexual na literatura incluem dois elementos: uma parte objetiva que categoriza tipos e graus de maus-tratos, e uma parte subjetiva que considera o impacto no bem-estar da criança. Isso reflete a dupla natureza do fenômeno: o ato em si e o estado subjetivo da criança que o sofre.
Para alguns autores não é relevante que a criança apresente danos físicos, psicológicos ou alteração de comportamento, pois o que importa primordialmente é a natureza do ato cometido (ou omitido); para outros, porém, a medida dos maus-tratos consiste nas consequências relatadas pela criança.
A questão do impacto das ações humanas é complexa porque não há uma relação linear entre a natureza da ação e seus efeitos. A mesma ação pode ter efeitos diferentes em pessoas diferentes, e ações diferentes podem ter efeitos semelhantes na mesma pessoa. Isso é válido especialmente para ações menos traumáticas. Não sabemos o suficiente para afirmar com certeza quais atos prejudicam ou são neutros para qualquer criança. Portanto, definições de maus-tratos devem considerar aspectos objetivos e subjetivos, pois um especifica o outro. Além disso, a sensibilidade social em relação aos maus-tratos aumentou exponencialmente nas últimas décadas.
É difícil estimar com precisão a quantidade de abusos em um país por dois motivos: nem todos os casos são denunciados ou conhecidos pelos serviços de proteção, fazendo com que o número de denúncias seja menor que o real, e nem todos os casos relatados são verdadeiros, podendo haver casos que nunca aconteceram.
Na literatura, há duas principais abordagens para quantificar o abuso: 1) estatísticas de denúncias em um determinado território e período, e 2) pesquisas com adultos sobre abusos na infância. Ambas enfrentam dificuldades que afetam sua confiabilidade. As estatísticas de denúncias podem subestimar os casos reais, pois nem todos são relatados e há divergências sobre a extensão do fenômeno oculto. As pesquisas com adultos, baseadas em memórias de infância, são ainda mais imprecisas, pois se baseiam em premissas frequentemente falsas.
Diante disso, a premissa de que as memórias de adultos e adolescentes são sempre confiáveis é equivocada. O fenômeno das ‘falsas memórias’ revela que são constantemente modificadas e reconstruídas ao longo do tempo. As memórias autobiográficas, em especial, são ajustadas para se alinhar com o significado e a coerência que a pessoa deseja atribuir a si mesma.
A literatura científica atual, incluindo estudos de Loftus (1989; 1994), demonstra que muitas memórias podem ser falsas, frequentemente induzidas por sugestões ou pela imaginação. Essas falsas memórias são usadas subconscientemente para justificar sintomas de sofrimento mental. Freud já indicava isso há um século, ao escrever para Fliess em 1897: “Não acredito mais nos meus neuróticos […] A surpresa que em todos os casos a culpa sempre foi atribuída à perversidade do pai […] é difícil acreditar em tal difusão […] não há verdade emocional e ficção” (FREUD, 1961).
Há um paradoxo no fenômeno do abuso sexual infantil, que parece estar em constante crescimento, com um aumento de cerca de 10% nas queixas às autoridades nos últimos anos. Embora isso sugira um aumento nos abusos, as estatísticas de casos graves, que não podem ser ocultados, permanecem estáveis. Esse contraste indica que a mudança está na resposta profissional e na maior sensibilidade social, permitindo que mais casos sejam denunciados e conhecidos. Anteriormente, muitos casos eram ocultados, mas agora, com maior conscientização, mais abusos são divulgados, o que explica o aparente aumento sem um real crescimento nos casos graves.
REFERÊNCIAS:
GULOTTA, G & CUTICA, I. Guida ala perizia in tema di abuso sessuale e ala sua critica. Giufré Editore, Milano, It, 2009.