Olhar sistêmico: inclusão e reorganização da hierarquia familiar de um dependente químico

A high angle closeup shot of a male holding a glass of whiskey

Por Rosane Klein

Numa sexta-feira, 26 de junho de 2020, Carlos (pseudônimo utilizado nesse texto) fez contato comigo por indicação da irmã dele para marcarmos uma consulta. Hoje, retornando em nossas mensagens, vejo que escreveu uma palavra que permaneceu no ar: ‘para compararmos’. Só agora entendi! Foi num psicólogo que não sentiu que poderia ajudá-lo. Me relatou na época, mas também poderia ser parte do seu processo de defesa. Ao mesmo tempo, parece-me cada vez mais que os pacientes ‘analisam’ o profissional, o que também pode ser bom para a eficácia e o comprometimento do tratamento.

Atender dependência química não é tarefa simples. Entrar nesse campo requer um nível de frustração significativo, pois os pacientes têm pouca aderência ao tratamento. Porém, desperta atenção devido ao sofrimento em que são expostos e se tratar de uma problemática que envolve a família na totalidade. Inclusive, no Alcoólicos Anônimos (AA) dizem: onde há um alcoólico, há outras cinco pessoas doentes que sofrem em conjunto. Por vezes cogitei desistir, mas trabalhar junto ao dependente e à sua família e poder observar mudanças tão impactantes para todos, não só ao dependente, é instigante. Sem a família fortemente engajada, o ‘insucesso’ é praticamente garantido.

Sua primeira sessão foi marcada para o dia 29 de junho, segunda-feira. Por que esse dado é importante? Por se tratar do primeiro dia de abstinência que se colocou já na primeira sessão, o que é raro, embora ainda com dúvidas se em algum momento tornaria a beber controladamente.

O ato de beber causa uma alteração no sistema nervoso central que inicialmente aparenta um quadro de euforia, mas trata-se de um neurodepressor. Em geral, o dependente químico se mostra como uma pessoa bastante sensível e perceptiva ao que o rodeia. Ao beber com sensações de prazer e alegria, a embriaguez distorce e anestesia a realidade. E quando tal comportamento ‘funciona’ cada vez mais, existe uma tendência a aumentar a ingestão, que normalmente inicia ainda na adolescência, ou antes. Essa pode ser uma maneira simplista de olhar, mas, sim, a dependência é complexa e multifatorial.

O sistema familiar mostra padrões observáveis através do genograma, composto por símbolos e linhas, que funciona como um mapa onde é possível identificar a estrutura familiar, a hierarquia, quem faz parte, suas relações e os sintomas que permeiam o sistema. Dada a pergunta ‘quem mais bebe ou bebia nesta família?’, no caso de Carlos, é possível observar que seu pai, já falecido, costumava beber, e seu irmão mais velho continua igualmente com um beber abusivo, segundo sua descrição.

Onde entra a pandemia nisso tudo? Carlos surgiu no momento auge da pandemia. A reação de cada um a este momento de isolamento social é uma incógnita, repleta de medos, ansiedades e angústias em relação ao futuro e surgem de todas as formas. Porém, especialmente neste caso, com este paciente, o período de isolamento social pareceu ser um fator protetivo para a firmeza de propósito do abster-se de beber. Os encontros regados a bebida, tanto com familiares quanto com amigos, cessaram devido ao risco de contágio da doença. Cada família optou por ficar em casa e todas as festas, churrascos e eventos que antes eram promovidos tiveram de ser suspensos.

Quando Carlos chegou para a terapia, seu quadro já se configurava diante de perdas significativas prestes a ocorrer. Sua esposa pediu separação, embora já dormissem em quartos distintos, vivia praticamente isolado do convívio familiar e seu filho o rejeitava, suas caixas com quase todos os pertences embalados e espalhados pela casa, prontos para ir embora consigo. Sua ressaca começava a melhorar na terça, conseguindo trabalhar um pouco na quarta, porém, na quinta-feira, já se preparava para o início do final de semana. Escondia garrafas na lavanderia e, se precisasse optar entre pagar uma conta de luz ou comprar bebidas, a segunda opção era a preferência. A esposa, da área da saúde, ao decorrer do tempo, arcava com cerca de 80% das contas, pois Carlos direcionava seu dinheiro à compra de inúmeros vinhos e outras bebidas. Mas sua atitude assertiva, naquele momento, fez com que acreditasse de fato estar prestes a perder algo que considerava muito importante: sua família. Sua vida profissional foi completamente afetada.

Além da terapia sistêmica, trabalhamos com EMDR, uma terapia para tratamento de traumas, algo que pudesse fortalecer o self nessa questão profissional. Gosta do que faz, porém, se via como ‘alguém que vai deixando as coisas inacabadas’. Para o público masculino, este é um valor bastante significativo: sua identidade profissional. Mas através da ressignificação e feitos seus resgates, sua imagem se fortaleceu, suas ações começaram a surtir efeito e sua demanda de trabalho aumentou. Sua autoestima profissional e pessoal foi gradativamente sendo reforçada por bons resultados em todos os campos, e a hierarquia familiar se reestruturou.

Quando chegou para a terapia, tivemos vários fatores ocorrendo simultaneamente. Na ocasião, seu filho subira como função ao seu lugar e permaneceu ao lado de sua mãe, chegando, inclusive, a dormir na mesma cama. Sua esposa se protegia da relação ao permitir que o filho dormisse com ela. E o filho, querendo proteger a mãe, ocupou fisicamente o lugar do pai, numa exclusão explícita. Assim, Carlos ficou uma hierarquia abaixo, sendo tratado como um filho desajustado no sistema familiar, dependente, não dando conta de gerir a própria vida e sendo cada vez mais excluído até a possível separação.

A reversão hierárquica foi um processo que demandou muita paciência do paciente, bem como de todo o sistema. O casal foi atendido em uma sessão para alinharmos ações em conjunto e escutar essa esposa magoada com toda a situação, possibilitando essa reorganização. O filho também foi convidado para outra sessão familiar, mas ainda não aconteceu. Ademais, os três estão em suas terapias individuais, fator determinante para o andamento da reorganização e possibilidade das relações ficarem mais saudáveis e fluídas.

O cliente foi atendido por uma psiquiatra da família há algum tempo, que já conhece o histórico dele. Ela optou em não fornecer medicação alguma, segundo avaliação de Carlos, que estava tendo comportamentos diferentes de outras ocasiões em que tentou parar de beber. Ela parece ter bancado junto a sua mudança. Agora, parecia estar mais determinado. Sua vida estava prestes a mudar radicalmente, perdendo muita coisa.

Com a intenção de conduzirmos atendimentos interdisciplinares, a psiquiatra e eu estamos alinhadas e observando o paciente nas suas escolhas e atitudes. Ele tem enfrentado testes às vezes desafiadores, tanto familiares quanto sociais, mas compareceu recentemente a um evento e enfrentou muito bem a ocasião, continuando abstêmio até o momento. Passou a fazer exercícios regularmente, com caminhadas e pedaladas aos finais de semana, tendo a atividade física como algo prazeroso. Perder peso foi uma consequência natural desse processo de retomada de si. Se desenvolveu muito profissionalmente ao decorrer dos últimos meses, reocupando o espaço que havia perdido. E, quanto à família, seu filho tornou a dormir sozinho em seu quarto. O casal refez sua relação, segundo eles, como nunca viveram anteriormente; Carlos retornou ao lugar de marido, companheiro e pai, e optaram juntos pela vasectomia para estarem mais seguros e relaxados em sua vida sexual. Sentem-se como se estivessem no começo de um namoro.

Após um período, sua esposa enviou mensagens relatando que as caixas foram desfeitas, em um grande processo de reciclagem sobre o que de fato desejam para o seu futuro, refazendo o processo de inclusão e reorganização familiar em um novo formato.

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