O ser humano e o socorro através da arte: o que a psicanálise tem a dizer?

Por Valmir Uhrein

Este é o terceiro texto que escrevo para a Revista Desatando Traumas. O tema, mais uma vez, remete ao nascimento e à relação com o trauma. Porém, o que a Arte e a Psicanálise têm a ver com isso? Todo gênio revela, de algum modo, a radical necessidade de criar, inventar, poetizar, embelezar e remodelar a existência e o mundo. Goethe fazia versos sobre seus sofrimentos para deles se livrar. Uma das primeiras pacientes de Freud, interrompida várias vezes no seu discurso, lhe pediu para permanecer quieto, não intervir e deixá-la falar, pois falando sentia-se mais limpa e aliviada. Saber escutar também é uma arte.

Através da arte, poetas, músicos e pintores puderam objetivar os mais diversos sentimentos através da escrita, do som e das cores. Entendemos a arte como o lugar privilegiado onde é possível debruçar a existência para descansar e, descansados, seguir em frente. É isto: a arte descansa à existência. Porém, qual o lugar da arte diante de casos mais complexos da existência? Como ela pode socorrer, por exemplo, um portador de sofrimento psíquico? Para responder essas questões, vejamos a trajetória de um dos maiores pintores que a humanidade conheceu: o holandês Vincent van Gogh.

Desde o seu nascimento, Vincent Willem van Gogh viveu em dificuldade. Nasceu em 30 de março de 1853, exatamente um ano após uma criança, seu irmão, natimorto, chamado como ele, Vincent Willem van Gogh. O túmulo desse primeiro Vincent se achava a poucos passos da Igreja onde o pai oficiava como pastor de Croot Zundert, pequena aldeia rural de uma centena de habitantes no sul da Holanda. Assim, tão logo aprendeu a ler, o pequeno Vincent pôde ver seu nome como em seu próprio túmulo (HAZIOT, 2007). Estas circunstâncias fazem de Vincent o filho substituto. No mínimo, uma coincidência sintomática e atroz, ou seja, nascer no mesmo dia do irmão morto e levar consigo o nome do outro que não existia mais.

A coincidência simbólica da data do nascimento é um dado da biografia do artista que não pode deixar de impressionar um psicanalista. Como disse e recomenda o próprio Lacan (1962, p. 83):

vocês sabem, como analistas, a importância que tem em toda análise o nome próprio do sujeito. Vocês têm sempre que prestar atenção em como se chama o seu paciente. Nunca é indiferente. […] O que é um nome próprio? A função do nome próprio é a de inscrever um sujeito não apenas como um nome civil, mas no muito mais significativo da ordem simbólica.

Segundo a psicanálise, esta conjuntura de fatos, como a de substituir outro que veio ao mundo, ocasiona na criança um grande sentimento de culpa: sentimento de ter provocado essa morte, culpa por nascer e existir, inscritos no inconsciente daquele que fica. Para isso, a existência requer uma série de justificativas, realizando prodígios ou contentar-se em ser nada e desaparecer. O que fazer para merecer estar vivo? A existência de Van Gogh teria se apresentado como uma dívida a pagar.

Estas questões podem ser refletidas a partir de um argumento que amplia a visão referente ao artista, para muito além de uma visão simplesmente patográfica. Esta nova visão se constitui, no caso de Vincent, a partir da produção artística propriamente dita. Neste caso, interessa muito pouco a biografia do artista, suas referências históricas, mas aquilo que foi possível produzir, significar e identificar a partir da história e da biografia.  Por isso, não podemos reduzir as obras de Vincent ao desencadeamento da sua psicose, porque existe uma autonomia da obra. Podemos conhecer a obra de arte sem conhecer nada do seu autor. Significa que não é determinante conhecer a biografia do seu autor para apreciar a sua obra. 

Dito de outro modo, a obra de arte socorre o autor porque goza de uma autonomia no que diz respeito à biografia, pois a obra de arte explica a vida e não somente a história. Isto revela que a loucura, o sofrimento psíquico de Vincent, demonstram sua força aplicada ao pincel: desde os fortes tons de amarelo e verde inconfundíveis em suas telas e seus autorretratos até seus girassóis, ciprestes, par de sapatos velhos, comedores de batatas e tantas outras obras que fundam histórias para além do patológico, que salvam, se constituem pela arte e eternizam o artista.

REFERÊNCIAS:

HAZIOT, D. Van Gogh. 2007.

LACAN, J. (1961-1962). O seminário, livro 9: a identificação. Inédito. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.

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