O peixe morreu pela boca

Por Renata Régis Florisbelo

Quando criança, escutava muito o termo: ‘o peixe morre pela boca’. Coisa mais estranha… Como assim? Primeiro o espantamento para logo em seguida vir a mente a imagem fatídica do imenso anzol a fisgar, literalmente, o pobre, infeliz, nadador. O tom de aumento da dramaticidade fica por conta de o peixe ter aquele par de olhos esbugalhados, que mesmo em caso de morte permanecem mortal e irremediavelmente abertos. Por vezes, a dimensão do anzol desproporcional em relação ao corpo reluzente em escamas, lábios grossos presos e perfurados pelo algoz anzol.

Por outro lado, choca a postura ativa do bicho em relação à própria tragédia. Afinal, foi ele quem voluntariamente se deslocou e alçou, mais do que isto, abocanhou o imóvel anzol, disfarçado em alguma coisa comestível. E como teria evitado o gesto, haja vista a urgente e inclemente necessidade de se alimentar? Também não é meu papel defendê-lo, afinal não sou advogada, muito menos de animais de sangue-frio.

E por que enfiei o peixe fisgado numa conversa sobre traumas? Porque, metaforicamente, vejo estes dois componentes de forte modo presente no nosso tema. Um ato absolutamente voluntário e de livre escolha pode gerar ou estar relacionado a uma situação traumatizante, trágica, sem que tenha sido pensado ou premeditado pelo seu agente. Os olhos afoitos, ávidos pelo alimento tão necessário, que se enganam, apesar de imensos e eternamente abertos, mas que não vislumbram o perigo. Para, por fim, restar deles, além da morte em prol da frigideira alheia, a má fama pela gula cega (e gula é pecado capital!, o que possibilitaria um sem fim de outras conjecturas) como o único algoz do próprio infortúnio.

A mãozinha que está por trás do anzol sequer é mencionada, causadora de todo o contexto que também se acha cheia de motivos justos e nobres, prover sustento e alimento. Resultado: trauma para o peixe, para quem se impressiona com a cena da morte pela fisgada, pela oportuna reflexão sobre agentes, causadores, vítimas e seus traumas. Confesso, até hoje acho triste pensar que o peixe morreu pela boca, mas este trauma é meu.

Subir
Abrir bate-papo
Olá 👋
Podemos ajudá-lo?