Por Renata Regis Florisbelo
Certas memórias são tão antigas que parecem ter nascido antes de nós. Desde quando comecei a pensar e a ter capacidade de entender e conectar coisas, recordo-me da fala de minha mãe sobre ela: Marina Cava, minha bisavó materna que nunca conheci pessoalmente, posto que faleceu quando minha mãe tinha apenas nove anos, mas tanto marcou a vida da minha mãe que acabou marcando a minha também.
Uma vida inteira ouvindo sobre ela. E como estas falas ganham vida, corpo e se instalam em nossos sentimentos… O poder e a mágica da vida dos antepassados irradiando sobre nós. Neste caso uma irradiação plena de amor, pois Marina conseguiu transformar as dores que a vida lhe trouxe em puro amor e dedicação.
O que minha mãe sempre contou e na eternidade repetirá é sobre o profundo afeto recebido dela na casa singela, nos rigores de uma vida cheia de desafios e escassez financeira. Marina atendia e acolhia os netos, preparava o alimento, arrumava a casa enquanto sua filha e genro iam cuidar da roça e dos animais, fonte de subsistência da família. Detalhe: o terreno era propriedade de Marina, fruto de grandiosa economia e esforço de trabalho e que depois legou à filha.
E o que isto interessa aos leitores da Revista Desatando Traumas? Interessa refletir que em cada história, em cada pessoa e cada família há fontes infinitas de aprendizagem, reconhecimento e desafios permeados por provas de amor ocultas, mesmo e através de seus traumas. Somente em 2024 tive coragem de trazer a público a história da Marina, através da participação em uma obra literária como forma de homenageá-la. Sim, a arte também serve para honrar vidas.
Os pais de Marina vieram para o Brasil fugidos da fome e das guerras na Itália. Chegaram em Santa Catarina e se fixaram no interior do estado numa colônia de imigrantes italianos. A vida mesmo no Brasil não era fácil e havia muita privação e falta de recursos. Moça feita, Marina e uma irmã foram para Florianópolis em busca de uma vida melhor como empregadas domésticas. Na Ilha da Magia, teve oportunidade de trabalho em casas de excelentes famílias onde aprendeu e se desenvolveu, sendo muito bem recomendada.
Nos anos de 1910, Emílio Eles chegou à Florianópolis, cônsul da Itália no Brasil justamente com a missão de auxiliar nas demandas dos imigrantes italianos. Era um homem culto, exigente, e foi um trabalho conseguir uma governanta refinada o suficiente para atender os seus critérios, que incluíam a fluência no idioma italiano. Marina enfim foi a escolhida e, nas surpresas que a vida traz, algum tempo depois, viu-se grávida do cônsul que, antes do parto já estava longe, designado para atuar em outro país. Nunca viu o casal de gêmeos que nasceram: Alice e Emílio.
Contava-se que por vários meses teria enviado dinheiro para sustentar as crianças, porém, depois de certo tempo, os recursos não chegaram mais e não se soube se deixou de enviar, alguém não entregou ou se os rigores de outros conflitos entre países e continentes impediram a chegada dos recursos. Fato é que Marina nunca se referiu a ele de forma negativa e até hoje há uma foto marcante e expressiva num quadro que minha mãe recebeu da viúva de Emílio (tio-avô), filho do Emílio (cônsul).
Emílio Eles possuia família na Itália que não veio com ele ao Brasil. Na terra Brasilis, sozinho, viveu um romance com minha bisavó, que nunca mais se envolveu com ninguém. E por conta desse amor, estamos todos aqui, inclusive eu, que somente depois de publicar dezoito livros tive coragem de falar sobre ela, a amada Marina, e seus filhos, Emílio e Alice, nascidos em 1913.
Creio não ser necessário detalhar o contexto dos anos de 1910 para uma mãe solteira de gêmeos. Marina teve que deixar seus filhos com outra família até que, somente quando estavam com oito anos de idade, conseguiu buscá-los com condições de cuidar deles. Mas a vida seguia, Alice estava apegada à mãe adotiva e não conseguiu se separar dela. Então, lá foi a Marina para Florianópolis com o filho Emílio, que recebeu boa educação e tornou-se um próspero comerciante.
Alice tornou-se uma camponesa hábil na roça e na criação de animais. Após oito meses de casamento, ficou viúva, para em seguida conhecer e se apaixonar por um homem de quem ficou grávida. Ele já tinha uma noiva e propôs manter o relacionamento com ambas, porém Alice não aceitou e escreveu à Marina pedindo acolhimento. Foi prontamente recebida pela mãe que morava sozinha numa propriedade recém comprada em Itajaí, Santa Catarina, região onde havia vários imigrantes italianos e descendentes.
Depois, Alice se casou com João Borges Regis, que assumiu o pequeno Francisco. A família aumentou, incluindo minha mãe, Teresa Regis Florisbelo, eu e meus irmãos. Entramos nesta história sempre ouvindo sobre Marina. Só tínhamos duas referências dela: uma foto 3×4 cuja aparência e olhar são quase impossíveis de se descrever em tanta altivez e profundidade, e outra é a lápide de seu túmulo, singela com o nome e datas de nascimento e morte inscritos em letra tão delicada como jamais vi igual.
O ponto central deste desabafo literário é a dor que sempre senti pela formação da família de modo oficioso, sem registro. Eu tinha vergonha pela situação e, ao mesmo tempo, muita admiração por Marina, que desde novinha muito amei e ainda amo.
A vida vai ensinando e percebo que esta vergonha possivelmente não era minha, mas daqueles que vieram antes de mim. Ninguém do nosso ramo aqui no Brasil procurou na Itália contato com os descendentes deste bisavô Emílio Eles. Penso que não quiseram (e não queremos). Um navio o trouxe e outro o levou; mas Marina, maravilhosa, para sempre ficou.