Máquina de costura

Por Renata Régis Florisbelo

Desde criança tenho fascínio por costureiras. Qualquer coisa mágica, talvez ancestral, me leva a olhar para elas com uma admiração que só elas receberão. Um misto de interesse real, não frugal, curiosidade especulativa, e pitadas de autêntica contemplação. Visitei a memória que me fez parar para observar, agora, uma fila delas desfilando em minha mente vindas dos tempos idos. Minha avó materna faz abre-alas à nobre fila. Nem a vi costurar tantas vezes assim quando era menina, posto que ela possuía inúmeros afazeres, incluindo o cuidado com os animais, tarefa que mais gostava. Dar de comer às vacas e tirar leite era um ritual corriqueiro, contudo magistral para o meu deleite, ritualística de alto poder de magia, interação entre ser humano e animal e cada um dispondo o seu melhor.

Depois que todos os animais estavam alimentados, entrava em ação a máquina de costura antiga e com ela outra maestria demonstrada e desenvolvida com requintes de quem sabe urdir em todas as esferas da vida. Marca tradicionalíssima, a mais conceituada dentre os descendentes da cultura europeia no Sul do Brasil, toda preta em detalhes e arabescos estilo art nouveau, coisa linda de se ver, que até hoje a lembrança da imagem causa arrepios pela beleza descomunal no par mulher-máquina de costura. O maquinismo era completamente mecânico, a energia elétrica ainda não a movia. Possuir a máquina e dominar seus mecanismos era digno e comparável aos grandes cavaleiros, formando um conjunto completo com seus cavalos cheios de estirpe em raças consagradas. Era um transe que se testemunhava e não se sabia se a mulher incorporava a máquina de costura ou se a máquina de costura incorporava a mulher, fusão de corpos e sentidos para trazer as peças em primor contemplativo.

Ainda velhinha, minha avó me fez panos de louça que ainda tenho comigo, puídos e já bem vividos. O domínio do pedal e do mecanismo de costura em si demandava imensa perícia e mãos e olhos se punham a acompanhar as curvas do tecido na precisão requerida. Para as menos habilidosas, era fácil deixar formar nós e maçarocas virando a linha, uma tragédia em nós e desalinhos que após formados dificilmente seriam ordenados sem grande esforço e prejuízos irreparáveis ao tecido.

Tempos um pouco mais recentes, vi minha mãe costurando também. Outros tempos, outras máquinas, agora elétricas e o pedal requeria bem menos esforço, embora a falta de habilidade fadasse o conjunto aos nós e maçarocas quase indesatáveis. Vieram outras costureiras que produziram trajes inesquecíveis e irretocáveis, como o vestido de baile da minha formatura da graduação ao nível superior, num vermelho brocado sem igual.

A lembrança suave e nostálgica das costureiras remeteu à reflexão sobre o quão desfazer o que não precisaria ter sido feito pode ser trabalhoso e doloroso. Sei que embora nossa pauta maior e tema seja “desatar traumas”, meu raciocínio caminha no sentido de evitar a formação dos nós (traumas), que uma vez estabelecidos, tanto mais difícil será desfazê-los.

 O som da máquina de costura, como me lembro delas, era mesmo feito música, envolvente em acordes que remetiam à originalidade de suas instrumentistas, uma vida harmoniosa em transcorrência leve e rítmica. As costureiras em suas máquinas eram uma orquestra completa no conjunto de todos os instrumentos e do maestro em espetáculo final. Antes deles, os ensaios na forma da preparação, risco e corte dos moldes, muitas vezes finalizados no corpo. A intimidade em desvelar de cada corpo a peça que lhe recobriria. Horas e mais horas e o trabalho hábil e ritmado produzia uma obra perfeita, costura limpa, sem desalinho de fios, tampouco emaranhados em qualquer circunstância e ainda hoje a produzir salutar efeito pela lembrança. Sem nós a desatar, ao final da costura a peça a virar. Não bastava a perfeição visível no corpo, a verdadeira profissional atestada seu talento pelo avesso da roupa. E a metáfora fica perfeita: quem conseguiria virar-se do avesso e não encontrar um emaranhado de nós sequer? Nós, ou seja, traumas que não residem no avesso dos nossos vestidos.

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