Dança urbana com lobos

Por Renata Regis Florisbelo

 

Não era o Kevin Costner. Na manhã de sábado que prenunciava o inverno, o homem saltitava na esquina. Pulos festivos e acompanhados de dois cães, um conjunto peculiar no centro urbanizado da cidade: impossível não fazer lembrar da icônica cena homem-e-lobo do filme Dança com lobos, produção do ano de 1990. Marcado pela qualidade técnica, lhe rendou um Oscar de melhor filme, trazia indígenas norte-americanos até então apresentados como selvagens e agressivos em oposição ao homem branco ‘inocente’, na grandeza e pujança imensurável de sua cultura. É exemplo para toda a humanidade de respeito ao próximo, à natureza e, fundamentalmente, à toda e qualquer forma de vida.

Na cultura Sioux, o nome somente era atribuído a alguém mediante um fato marcante que apresentasse uma faceta importante da personalidade daquele indivíduo. No filme, o personagem principal, interpretado pelo ator Kevin Costner, um militar vivendo sozinho num forte, era secretamente observado pelos indígenas que o flagraram brincando com o lobo por ele nominado de Duas Meias. A cena incomum e bela aos olhos dos observadores deu origem ao seu nome junto àquela tribo: Dança com lobos. Na trama, o personagem os contacta e mergulha numa primorosa, bem descrita e bem filmada saga adentrando as raízes daquela cultura. Nunca, em uma produção hollywoodiana, houve dedicação, esforços e recursos em revelar uma cultura diversa em tamanha sintonia em valores de vida, amor, respeito ao próximo e civilidade, profunda civilidade como a nossa, tida como ‘civilizada’.

O filme revela o choque em ver as vidas de um povo devastadas pela ambição, a irascível ganância que cegou um povo que se dedicou a usurpar e a exaurir os recursos naturais de seus donos originais; o massacre de uma etnia e a aniquilação do seu modo de viver. Em comparação, o homem saltitante a brincar com vira-latas, tão vira-latas quanto ele e eu, contudo bem mais assumidos, remete à leveza de tudo, ao gigantismo de um coração tranquilo que a tudo aceita no viés da vida simples e natural. Tanto quanto se pode brincar com cachorros de rua, brincar com alguém, seja lá quem for, brincar e rir de si.

Se assim vivêssemos, muito menos acometidos por infindáveis traumas seríamos. Isto é um conselho? Não. É teoria ou filosofia? Também não. Não é nada, apenas a leitura natural, pessoal e intransferível que me atropelou as retinas em forma de percepção naquela manhã. Pensei que poderia ser aquele homem, meio andarilho, inteiro sem rumo, por inteiro entregue ao momento de se entreter com os cães. Ou o cachorro, leve, despretensioso, apenas atrás de alguma comida para sobreviver e de alguém para brincar e brincadeira é vida. Poderia ser uma das latas que o cão vira-latas reviram em buscas de tantas coisas e que apenas recebe o que lhe é atirado: sobras, lixos, também coisas boas e de valor que alguém num rompante de fúria resolveu descartar.

Quem tem seus próprios lobos para brincar? Quem cultiva e apazígua suas feras para depois com elas se refestelar? Ou cultiva em gesto, um nome para com ele se harmonizar e através dele se identificar? Sei que aquele conjunto do homem com seus dois cachorros afrontando o mau-humor urbano em brincadeiras de invejar me fizeram pensar que posso ser lobo ou gente, desde que viva para dançar. E os traumas? Ficarão em último lugar.

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