Coração ferido

Por Renata Regis Florisbelo

Tenho um coração ferido. Não foi caso de morte, não foi fruto de projétil ou tiro, contudo foi algo incisivo, equivalente a um corte preciso, um bisturi que rasgou e cortou o peito escolhido, previamente escolhido. De tudo que se pondera, sempre vigora o que machuca pelas emoções, que muito mais se doem e demoram para cicatrizar do que a carne. Os tecidos humanos, pele, músculos, são moles. Até os ossos, significativamente mais duros, contêm em seu interior a substância mais macia, a própria vida em estado potencial, a medula através da qual tudo perdura em perene chance de continuidade da vida.

Podemos exemplificar com a vitalidade das plantas, tão tenras e verdes e tão vivas, “verdes como a esperança e como o mar”, como já dizia o poeta Heitor Stockler de França em seu belíssimo poema Teus olhos. Olhos? Moradas da alma, do coração pelos olhos a se marear.

Intriga-me muito o poder das dores do coração e o quanto este órgão, em sua metáfora de associação ao amor, insiste em deixar o tempo correr no fluxo incerto a fim de se demorar na cicatrização. Tantas vezes nunca cicatriza, guardando inafiançavelmente suas dores feito o meliante numa prisão. O cérebro também apresenta sua porção cúmplice recorrendo às lembranças e imagens traumáticas, ao menos inapagáveis, em visitas recorrentes às porções conscientes.

É claro que pondero sobre a dor de amor. Tema tão reincidente na vida e, no coração dos poetas, o ‘mal de amor’ que fazia definhar os sensíveis escritores de séculos atrás. Hoje, um mundo tão instantaneamente percorrido por meio da varredura tecnológica, ainda não oferece modos de lidar com as ‘sofrências’ do amor não correspondido ou incompreendido. Há quem se preserve, um baú trancafiado e inerte; há quem, enlouquecidamente, se entregue de corpo (sei lá onde foi parar a alma); aqueles que habitam em cima do muro sem saberem para que lado vão, ao lado do vão que ocupa o coração, quando está em pauta uma forte emoção.

Reflito inúmeras vezes sobre as motivações para a escrita e por outras incontáveis vezes afirmo e reafirmo o efeito ‘expurgo’. Escrevo para expurgar dores, males e traumas como quem espreme uma lesão purulenta. A substância sai, tem de sair, às vezes por completo, em outras requisitando novos expurgos.

Escatológico? Sim, e pode ainda incluir um escárnio, pele esfolada. Estou exagerando? Claro que não, o gênero dramático já foi surrupiado há tempos e requerido (confiscado) pelos escritores, musicistas, artistas. Nunca mais ninguém estranhará o drama na literatura. Insisto: ele não vem sem motivo. O coração não é barreira, é sempre abrigo, só sabe acolher, até mesmo dores que lhe venham enternecer e fazer apiedar. Eu só escrevo porque tenho um coração para curar, que bata quietinho e deixe o peito serenar.

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