Convivência familiar

Por Celso Paulo Martins

 

Numa dessas manhãs, enquanto se preparava para ir ao colégio, minha filha de oito anos perguntou: ‘papai, o que é uma conta de vezes?’. Sabendo que ela aprendia adições e subtrações, expliquei que multiplicações eram adições sucessivas de um mesmo número, e que algo chamado tabuada facilitaria os cálculos. Mostrou-se entusiasmada com a matemática e declarou que enquanto os colegas fazem contas até cem, ela já pensa nas de duzentos! E, ao sairmos para encontrar a van, foi exemplificando a associação numérica que usa para fazer contas de cabeça. Dá para imaginar o orgulho que senti?

Uma reflexão me chegou naquele momento. Só é possível desenvolver a motivação para viver com alegria e se desafiar nos aprendizados ao contar com a autoestima elevada. Essa qualidade é fruto do convívio parental adequado, apoiador e acolhedor das singularidades da criança, mesmo que ela cresça em dois domicílios, como é nosso caso. Família unida ou dividida não é fator determinante para a felicidade, mas sim a qualidade do contato e o amor envolvido em cada instante. Dizem que bebês chegam sem manual de instrução, mas podemos sempre contar com nossos instintos, e os da linhagem mamífera nos ligará fortemente às nossas crias enquanto precisarem de nosso apoio.

Eventualmente precisaremos da experiência emprestada de parentes ou vizinhos, que guardam certa sabedoria. Somos permeados pela cultura em nossas experiências e viemos de sistemas familiares que prosperaram em meio a grandes desafios, alguns talvez vencidos pela força de nossos ancestrais. Raros são aqueles que cresceram em famílias amorosas e agregadoras. O mais comum foi presenciando violência doméstica, abuso físico ou moral, desamparo em maior ou menor grau. Em geral, somos sobreviventes de relações desequilibradas, embora tendamos a acreditar que nos tornamos pessoas decentes por essa educação mais austera, e é até normal reproduzirmos a mesma modelagem com nossos herdeiros.

Atravessamos abismos emocionais em decorrência disso, e eventualmente precisamos de ajuda para sair deles e reescrever nossas vidas. Daí a importância da terapia. Duas perguntas que ficam, sem julgamento de nossa ancestralidade, a quem devemos honrar nossa existência:

  1. Será que estamos prontos o bastante para criar filhos emocionalmente sadios?
  2. Será que não cometeremos as mesmas falhas inconscientes de nossos pais, por ignorância de seus efeitos ou, ao contrário, seremos permissivos a ponto de lançar ao mundo uma geração sem limites por medo de educá-los com disciplina excessiva?

Seria fantástico que os casais tivessem alguma noção do apego seguro e organizado antes de procriar, assim entenderiam seu papel fundamental na educação e desenvolvimento saudável dos filhos, não delegando para as escolas, psicólogos ou pedagogos. Crianças são o maior tesouro a nós confiado e nossa herança para a posteridade.

Minha formação e a prática clínica lidando com os efeitos do estresse e trauma por mais de dez anos mostra que a maioria esmagadora de clientes, adolescentes e adultos, carregam como fonte de suas dores os traumas de infância. Se assistidos desde cedo, seriam poupados de um bocado de sofrimento na vida adulta. Visando auxiliar pais e mães a se tornarem mais adequados e presentes na vida de seus filhos, planejo produzir em breve material esclarecedor a respeito.

A pequena mestra, que tem me ensinado tanto na singeleza de sua tenra idade, também goza do privilégio de conviver com um pai mais maduro e disponível do que tiveram seus irmãos mais velhos. Por força de meu ofício, estudei a neurobiologia pouco anos antes de seu nascimento, possibilitando-me ser um pai mais amoroso e motivador. Espero que isso se torne cada vez mais comum na nossa sociedade global.

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