Por Rosane Klein
No artigo anterior (chamado Olhar sistêmico: inclusão e reorganização da hierarquia familiar de um dependente químico), escrevi sobre a história de Carlos (pseudônimo utilizado para o artigo), um dependente químico em abstinência há três anos e em processo de psicoterapia no mesmo tempo. Algo marcante nesse paciente foi sua evolução no processo de conhecer a si. No início, mesmo no pós-internamento e em abstinência, parecia travar quando questionado sobre seu sentimento em relação a algo trazido à terapia. Parecia procurar dentro de si qualquer informação, mas nada vinha, por vezes gaguejava e ficava em silêncio. Sua resposta ‘não sei’ era a mais presente, o que lhe causava uma visível agonia e ansiedade. Quase poderia dizer que conseguia ver o ‘branco’ que ocorria em seu cérebro. Mas, simultaneamente, parecia desafiador buscar tais respostas.
Por que isso ocorre? É possível levantar a hipótese das sequelas neurais pelo uso da droga que dificulta esse processo, além do desconhecimento de si; no seu caso, a cocaína. Uma vez que sua mãe teve problemas com alcoolismo e seu pai era bastante ausente, essa linguagem e inteligência emocional não foi desenvolvida. Gradualmente, como uma criança em aprendizagem, passou a identificar e falar sobre seus sentimentos e se observar nas diversas situações.
Como relatei ao final do artigo anterior, sua esposa veio ao consultório para algumas sessões de casal. Encaminhei para outro terapeuta de casal que não possuísse vínculo com nenhum deles, mas o movimento não foi ocorreu; ele insistia no pedido e acabei aceitando o desafio, sabendo que teríamos limitações e barreiras para enfrentar, pois havia um vínculo estabelecido com ele. Com ela, porém, senti sua confiança para com o processo dele aumentar vendo os resultados do tratamento.
A postura e presença da esposa era quase um favor, atendendo um pedido do marido. Ele pedia para aprofundar a relação, olhar às suas questões do relacionamento e da sexualidade; até então trocavam elogios, o núcleo da dor permanecia protegido. Para ela, Carlos pedia absurdos sobre o que sofreu e viveram juntos no passado. Mas, eventualmente, a mágoa escondida há muito pelo uso de cocaína e álcool e todas as consequências do abuso de substâncias vieram à tona, e a dura revelação da convivência, das dores e dos traumas deixados na relação trouxe alívio à sessão. Parecia que, de fato, o que precisava ser dito, enfim foi.
A reação de Carlos foi a de um homem adulto consciente de que esse momento chegaria com força, mas ainda precisava ouvir e processar todas as informações. Afinal, danos foram deixados de lado e falados superficialmente. Mas esse é o retrato de parte considerável dos casais e famílias com dependentes químicos, mesmo aqueles em abstinência. Todos temem falar sobre assuntos complexos e delicados diante da possibilidade de haver recaídas, por isso a importância de casais e famílias serem assistidos por profissionais capacitados.
Sua esposa veio em duas sessões individuais depois desse fato para obter apoio e acolhimento individualmente, e ainda persistem comportamentos e linguagens infantilizados referentes a Carlos, fatos não aceitos por ela, que explica serem modos de demonstrar afeto. Porém, com acuidade auditiva, uma hipótese provável é o estabelecimento inconsciente de um tratamento maternal, muito comum em um casal onde há adicção. É como se não houvesse dois adultos na relação, mas um cuidador e um cuidado, uma mãe e um filho, em uma relação assimétrica. E, nesse caso, a batalha consiste em conquistar uma relação simétrica, equilibrada, ideal para o sucesso da relação do casal.
Por fim, Carlos e sua esposa encontraram um equilíbrio e uma paz possível no momento de sua relação. A jornada continuou e o paciente obteve um salto profissional no último mês: possui uma pequena empresa e recentemente recebeu um pedido inesperado. Isso mostra que, embora seja considerado difícil tratar a dependência química, não é impossível. Esse é um trabalho realizado em conjunto, onde o próprio dependente, sua família, sua rede de apoio, seu médico psiquiatra e seu psicólogo somam forças em prol da sua reabilitação, demonstrando ser possível resgatar vidas.