A morte do botão comentada

Por Renata Regis Florisbelo

“Habitava uma estranha casa, nela não se encaixava. Vivia, penso, praticamente por um fio. Nem sei bem o que o segurava àquele fio. Agonizante vê-lo, agoniado vivia ele, a um passo do abismo, da queda do que sequer seria um paraíso, contudo, era seu abrigo, preso ao próprio umbigo. Um fio de linha marrom, um traço mal cerzido marrom lhe aplacava da irremediável queda ao chão, a um metro e cinquenta da condenação. Era, sim, condenado sem crime declarado. Também não havia absolvição, se um dia quedasse ao chão. Pensava ele em sua vida, seus infortúnios, sua tediosa existência, sempre aberto ou fechado sem gosto, mãos desgostosas o tocavam. Mera rotina, mera necessidade de vestir ou de despir, contudo, sem emoção, sem o ímpeto de rasgar junto a carne, romper com casa, com fio, com linha, com botão marrom e tudo. E ele permanecia pendurado, calado, desolado, descolado da casa, da vida, do olhar do proprietário. Botão é propriedade de alguém? Sim, até que se subtraia, até que caia. Outrora pendurado por um simples fio, agora caiu de vez no vazio, no abismo não haveria outra vez.”

O texto “A morte do botão” faz parte do conteúdo da obra “Ínfimo colossal”, 16º livro de minha autoria, em fase de supervisão editorial, a ser publicado em breve. Nesta crônica, como em muitas outras, assumo o papel do ser inanimado e tomo suas dores e sentimentos, muitas vezes alegrias e prazeres também. No caso específico deste botão, ao ver um representante de sua espécie em situação de perigo, quase mortalmente penso por um mísero fio mal pregado, a emoção descrita aflorou e o resto veio por consequência.

Simultaneamente à escrita, um pensamento me inquiriu os motivos diretos e os subjacentes: por que vestir dores que não me pertencem? Por que partir da premissa (ainda que literária) de que o ser inerte não é inerte e sofre com dores palpáveis? Seriam nossas pálpebras que se abrem à imaginação ou real existência de aflição? Nosso inconsciente coletivo que se acostumou com dores e consequentes traumas a tal ponto de criá-los onde não existem? Ou o que existe se esparge (em tentáculos) de modo a assumir formas improváveis e nos fazer enxergá-las em espelho circunstancial? O botão sou eu em medos abissais pelas quedas da vida?

Sei que um arrepio me percorreu e ainda percorre quando lembro do fio penso mal sustentando o botão fadado ao chão. Se a queda acontecer não será a causa de fazer o botão morrer. Sua morte é por estar desconexo da peça, por deixar de cumprir sua missão primordial: ligar e unir as partes da roupa vestindo a pessoa em questão, quem quer que seja. Quantas quedas produziram este medo pessoal? É um trauma oculto em inspiração literária. Penso que um gesto salutar de compreensão e ação pode trazer a mim e ao botão igual salvação.

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