Quando precisamos respeitar o tempo do paciente?

People, lifestyle and body positivity concept. Beautiful young brunette female with extra pounds standing by window at home, crossing arms on her chest, having thoughtful pensive look, pondering

Por Rosane Klein

Escrever sobre algo já resolvido em consultório é prazeroso e relativamente fácil. Deixa-nos com a sensação de sucesso, de sermos competentes enquanto profissionais da Psicologia e da ajuda ao ser humano. O ego, aquele pelo qual nos expressamos no mundo, é bem atendido, pois conseguimos de alguma forma atingir o objetivo e meta com aquele cliente, respiramos aliviados e nos sentimos altivos. Mas e quando ainda não foi possível? Quando ‘não deu certo’ como gostaríamos enquanto profissional da ajuda no tempo que achamos ser razoável? Sim, temos vários desafios e com cada paciente é um, mesmo trabalhando há muitos anos na clínica.

Essa cliente, que chamaremos de Clarice, vem com uma queixa de ter tido uma crise no final de 2020, dando um basta para si mesma em seu sofrimento e procurando ajuda terapêutica.  Na sua primeira frase, quando chega, inicia uma lista de comportamentos que nos mostra seu perfil de funcionamento: ‘sempre cuidei de todo mundo, menos de mim’, uma doadora incondicional e mulher codependente. Esse termo (codependência) é utilizado na área de saúde usado para se referir às pessoas fortemente ligadas emocionalmente a outra com séria dependência física e/ou psicológica de uma substância, como álcool ou outras drogas. Há uma série de características, como sentir se responsável por outra(s) pessoa(s), pelos seus sentimentos, escolhas, bem ou mal-estar daquele(a) com quem se relaciona, e acaba se relacionando desta forma com os outros familiares e demais pessoas.

Clarice encontra-se com 53 anos, casada, com dois filhos na faculdade. Ela está no segundo curso superior, agora profissionalizando algo que ‘provavelmente fez de graça’: ajudar as pessoas sem muitos limites internos. Cursa Psicologia. Uma mulher inteligente, profissional em um grande colégio com várias unidades no Brasil na área da educação e com obesidade, relata seu peso: 115,9 kg quando chegou, no início de 2021. Engordou 14 kg no primeiro ano da pandemia.

Tem um histórico familiar de muita exigência e cobrança dos pais ao longo da vida, uma família que preza pela perfeição. Foi uma ‘boneca’ quando pequena e sua mãe reforçava sua beleza, uma vez que era uma criança loirinha, de olhos azuis, com lindos vestidos e oriunda de uma cultura forte e tradicionalmente alemã. O valor de perfeição é inconsciente nesta cultura e ‘ser uma boneca’ era tão forte que seus pais viajavam para diferentes países e traziam para si uma boneca de cada nacionalidade, fazendo uma coleção delas.

Já foi atleta de natação, competindo por um clube. Na adolescência, aos 14 anos, sofreu uma perda trágica de um irmão de 6 anos em um acidente com caminhão, no qual estava com a mãe. E, a partir disso, o trauma dominou os membros de sua família e suas relações.

Ao longo da terapia, após muitas sessões, percebeu o alcoolismo do marido, situação essa que passou pelo importante mecanismo de defesa não somente do alcoólatra como também do sistema familiar em negação. De fato, é difícil enxergar alguém alegre e que sempre gostou de receber seus amigos em festas com possível depressão e quadro de alcoolismo. Mas, com o decorrer do tempo e avanço da terapia, chegamos ao emaranhado da relação de casal e todos os seus sintomas, onde ninguém mexia no sintoma do outro para não mexer no seu próprio. Isto é, as compulsões caminham juntas; enquanto um come, outro bebe, e ninguém fala nada, num equilíbrio nada saudável.

Assim sendo, iniciamos seu tratamento de perda através da EMDR (em português, Dessensibilização e Reprocessamento pelo Movimento dos Olhos). No entanto, como terapeuta, senti que precisava fortalecê-la para ser capaz de trabalhar todo o conteúdo relacionado à obesidade, reduzir a velocidade para que seu inconsciente pudesse ‘relaxar’, diminuir as defesas inconscientes e confiar no processo. Por pedido da paciente, suas sessões, que costumavam ser semanais, passaram a ser quinzenais, e os assuntos urgentes foram abandonados, mudando o foco ao trabalho.

Eventualmente, levantamos a necessidade de uma sessão com sua atual família e realizamos o convite. Contudo, ela não ocorreu, mas responderam estarem abertos para diálogo. Apesar de ser muito doloroso e difícil para ambos, precisavam avançar para algo poder ser realizado no futuro. Muitas vezes, é piorando e, como nos casos de um dependentes químicos e do marido em questão, ‘chegando no fundo do poço’, que haverá uma decisão de retomar sua vida.

De fato, era necessário recursá-la. Ela precisava se sentir forte o suficiente para retomar a questão que é tão dolorosa e a trouxe à terapia: sua obesidade. Mas surgiu então outro fator: um contato solicitando uma sessão de pais ‘para ajudar’ sua filha sem ela saber. Com certeza, só aceitaria com a presença de Clarice, com sua permissão e consentimento. Aceitar um pedido como esse seria antiético e uma traição à própria paciente, que confia seus conteúdos a um profissional que implica sigilo, mesmo diante da fala preocupada com a vida da filha.

Não era a primeira vez em que houve uma tentativa de influenciar sua terapia. Era perceptível um funcionamento invasivo deste sistema familiar, aglutinador, que também levanta hipóteses de traumas complexos. Fazer uma sessão de terapia em família é uma oportunidade de abertura de comunicação no sistema de origem e com assistência. Havia também outro irmão, porém, o pedido para ele foi realizado em decorrência de um assunto específico e o rapaz não foi convidado. Mas, eventualmente, a sessão ocorreu.

Em uma sessão familiar, o que passamos ao longo das nossas vidas é impregnado como uma tatuagem no corpo e tudo precisava ser conduzido com delicadeza por haver muitas dores e traumas envolvidos. A mãe de Clarice apresenta obesidade e falou acerca disso em determinada ocasião. Mas, além da genética, também há uma lealdade familiar onde sintomas são repetidos por gerações, os ditos ‘padrões’. Se a mãe foi capa de revista, sua filha será uma boneca. E sua família, a partir da perda do filho, o irmão tomou outro rumo. Sua mãe, como relatou, ‘estava em outro lugar, fora do [seu] alcance, e parecia sempre estar atrás do pai’ após o ocorrido. Era como se sua imagem se tornasse nebulosa na sua memória pela sua ausência. E Clarice, tomada pelo trauma da perda, não conseguiu estar à frente dos cuidados da filha, que se sentiu ‘desamparada’.

De fato, o luto desestabiliza. Na sessão de família, como se não tivesse mais nenhum filho, trouxe uma frase muito forte que perdurou: ‘meu filho morreu’. Desejava pedir perdão à filha, mas não era o caso, pois não havia culpa. Pedi, então, para dizer: ‘eu sinto muito’. Foi quando o pai lembrou de uma frase dita pela filha, então com 14 anos, logo após a perda: ‘pai, você ainda tem dois. Somos uma família’. E ele, no momento da sessão, desabafou: ‘uma criança disse isso para mim… Me amparando’. Todos choraram e se abraçaram, foi um momento muito belo, onde houve a inclusão do irmão que se foi, mas continua fazendo parte, tanto quanto os demais.

Dois dias depois da sessão, houve uma reação de esvaziamento físico por parte da paciente: foi ao banheiro por dois dias, de cinco a seis vezes por dia. Portanto, esse é o sentido de quando dizemos que o tempo é do paciente. Às vezes sentimos poder avançar na caminhada, outras em que é mais adequado preparar uma base emocional mais sólida para quando decidir estar preparado para o seu próprio passo. Essa é a essência do cuidado com traumas complexos.

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